Apesar da confusão de números tumultuar a negociação com o Congresso em torno da regra do ouro das contas públicas, o real problema para o governo nesse tema é outro: a vinculação direta das despesas com a emissão de títulos. A armadilha que dá maior poder de negociação para os parlamentares foi armada no Orçamento aprovado em 2018, antes da posse do presidente Jair Bolsonaro, que precisa lidar com uma situação "embananada" que, senão for resolvida, o coloca na rota do crime de responsabilidade.
Na lei orçamentária, está definido que o pagamento de despesas como Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC), parte da Previdência e Plano Safra está vinculado à aprovação do crédito extraordinário de R$ 248 bilhões. Este era o déficit que o governo de então estimava para este ano.
Da maneira que foi redigido o texto final do Orçamento, mesmo com um déficit menor (ou até um superávit), contudo, o governo depende de deputados e senadores autorizarem o pagamento dessas despesas, pois esses gastos ficaram diretamente atrelados à fonte orçamentária "emissão de dívida".
Assim, à exceção do cenário em que o valor total pedido inicialmente de R$ 248 bilhões de crédito seja aprovado (o que parece improvável neste momento), a equipe econômica precisa arrancar do Congresso uma outra autorização para desvincular as despesas da autorização a ser dada pelo Congresso. Isso independe do valor que for liberado, sejam os R$ 146,7 bilhões pedidos pelo governo ontem, sejam os R$ 70 bilhões mencionados pelo relator da matéria, deputado Hildo Rocha (MDB-MA), ou outro número que venha a surgir.
Como indicou o secretário Mansueto Almeida, essa desvinculação deve ser feita em outros projetos que estão tramitando, e abordam especificamente o Orçamento. Em outras palavras, a aprovação de um crédito menor pode até dar fôlego de alguns meses para o governo pagar despesas que atingem diretamente a população, especialmente a mais pobre, que seriam interrompidas a partir de julho. Mas sozinho não resolve. A alternativa à desvinculação é aprovar outro crédito para completar os R$ 246 bilhões definidos no Orçamento.
A confusão que o governo faz com as estimativas em torno do déficit da regra de ouro também não ajuda nas negociações, facilitando a vida de quem quer dificultar as coisas para Bolsonaro. Na semana passada o governo divulgou o relatório bimestral de receitas e despesas, que é enviado ao Congresso, e projetou déficit de R$ 110 bilhões na regra de ouro. Apenas uma semana depois, o valor saltou para R$ 146,7 bilhões.
O argumento é que foram atualizadas premissas e utilizado um cenário de maior risco, no qual se trabalha com números menores de receitas de um lado e de investimentos de outro, que são partes da equação do dispositivo constitucional. Mas a nova projeção ainda não considera, por exemplo, o retorno de R$ 100 bilhões a mais do BNDES, que já foi oficialmente solicitado pela equipe econômica.
É verdade que, a despeito de seu conceito intuitivo (governo só pode se endividar para fazer investimento), a apuração da regra de ouro é extremamente complicada. Por isso, faz sentido o governo ser mais conservador em suas premissas. Por exemplo, não se sabe qual será a arrecadação de PIS/Pasep, que afeta a receita de um lado, mas, de outro, a despesa de capital,pois afeta a necessidade de aporte no Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). A inflação também pode ter oscilações mais fortes, alterando a amortização de dívida.
Então, a postura prudencial tem lógica, mas a equipe econômica precisa ser mais precisa e clara com suas projeções e análises, para tornar a discussão não só mais objetiva, mas também menos sujeita ao aproveitamento desse tipo de falha por interesses políticos.