Na sua primeira entrevista desde que deixou o cargo de presidente do Banco Central (BC), Ilan Goldfajn que deu início ao ciclo e corte dos juros no final de 2016 se manifesta sobre o assunto. Para o ex-BC o movimento que estamos observando na taxa de juros base e com os juros reais de longo prazo, é finalmente uma convergência para os patamares dos outros países emergentes. Segundo ele, os juros menores vieram para ficar, assim como ocorreu em outros países, como Mexico e Israel, que passaram por um processo similar ao nosso. Atualmente, o grande desafio é conseguir melhorar o crescimento. Para ele, o fato do governo ter parado de aumentar as despesas em 6% ao ano, via estímulos do governo, gerou consequências de curto prazo no crescimento. Há expectativa de crescer sem depender dos gastos do governo, os resultados poderão ser longevos e saudáveis para a economia. Afinal, para um país como o nosso, existe uma grande necessidade de infraestrutura, de ativos imobiliários.
Para ex-BC, desafio é como sair da armadilha da renda média
Por Claudia Safatle e Alex Ribeiro — De Brasília e São Paulo 21/10/2019
O Brasil finalmente convergiu para um patamar de inflação e juros mais baixos, afirma o ex-presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, na sua primeira entrevista desde que deixou o cargo. “Os juros menores vieram para ficar”, sentencia o hoje presidente do conselho do banco Credit Suisse no Brasil.
Para domar as expectativas inflacionárias, Ilan segurou em 2016 a pressão de empresários, economistas e do próprio governo para cortar juros. Agora ele diz que, da mesma forma que seus antecessores no comando do BC superaram mazelas como crises do balanço de pagamentos e hiperinflação, desta vez o país deixa para trás o anômalo título de maior juro do mundo.
Agora, nós precisamos gerar as condições para a volta do crescimento. Não depende só dos juros”
Ele traça um paralelo com México e Israel, que tinham juros altos e baixaram num período de desaceleração econômica. “O grande ‘pulo do gato’ é que as taxas não voltaram [ao patamar anterior] no momento em que a economia retomava”, diz.
Os juros menores ajudam, afirma ele, mas não resolvem a armadilha do baixo crescimento da economia. “O Brasil e o México não crescem muito há décadas. Chamei de mexicanização do Brasil”, disse. “Estamos hoje convergindo para um problema que é o da maioria dos emergentes: como sair da armadilha da renda média.” Para ele, dependerá de perseverança nas reformas, como as fiscais, de privatizações e investimentos em infraestrutura e, sobretudo, educação.
“O crescimento via subsídios, via entidades públicas, estatais, e todo o tipo de força que veio de alguma forma direta ou indiretamente do Estado, do governo, isso perdeu um pouco a força”, afirma Ilan. “O que tem a ver com a desaceleração que observamos no passado recente, isso também gera queda da inflação.”
Abaixo, os principais trechos da entrevista.
Valor: Como se chegou a essa taxa de juros baixa, se o governo ainda não tem resultados fiscais para mostrar?
Ilan Goldfajn: Tem um componente global e um local. A inflação no mundo está caindo. A inflação dos países desenvolvidos está abaixo das metas de 2% em vários países. Mesmo nos países emergentes a inflação está caindo. Isso tem razões estruturais, tem razões tecnológicas. O mundo está ficando mais competitivo. Muito e-commerce, muito produto on-line. Muita produção em que uma parte é feita num país e parte em outros. Isso gera uma força que afeta todos os países. Agora, nós também temos componentes do Brasil.
Valor: Quais são?
Ilan: Já há alguns anos houve uma mudança na direção da política econômica. Acho que isso teve um papel relevante de mudança de expectativas. Hoje, quando se olha inflação no Brasil, as expectativas estão ancoradas. No final das contas, as pessoas não acreditam que a inflação será alta no futuro. Estão vendo um Banco Central que atua com independência, que vai cuidar da inflação. Isso está se somando a uma questão mais estrutural que é o fato de termos mudado o mix de políticas fiscal e monetária, em que a política fiscal e quase-fiscal durante muitas décadas eram expansionistas. As despesas cresciam 6% acima da inflação, em média, durante vários anos. Agora, por força da necessidade de estabilizar a divida, pela incapacidade de aumentar ainda mais a carga tributária que já estava afetando a capacidade de a economia crescer, você é obrigado de fato a parar com o crescimento de gastos.
Valor: O sr. não citou o prolongado processo de recessão econômica como uma das causas do enfraquecimento da inflação.
Ilan: Acho que tem uma questão da despesa que parou de crescer - não só a despesa, mas o quadro fiscal. O crescimento via subsídios, via entidades públicas, estatais, e todo o tipo de força que veio de alguma forma direta ou indiretamente do Estado, do governo, isso perdeu um pouco a força. O que tem a ver com a desaceleração que observamos no passado recente, isso também gera queda da inflação. Nós temos uma tendência global que vem se somar a algumas mudanças locais. E a combinação das duas é uma combinação relativamente forte.
Valor: O que é temporário e o que é perene nesse mundo de juro baixo no Brasil?
Ilan: Há uma tendência global, de queda de inflação que já está durando algum tempo. No Brasil também estamos convergindo para uma inflação menor que acho que veio para ficar. Da mesma forma acredito que finalmente, depois de décadas de juros altos, está se convergindo para taxas mais próximas ao resto do mundo. Essa é uma mudança mais estrutural. Isso não significa que você não pode ter flutuação da taxa de juros ao longo do tempo. Mas acho que nós, finalmente, convergimos para um patamar de juro menor no Brasil. E os juros menores também vieram para ficar.
Valor: Mesmo quando houver uma aceleração da atividade?
Ilan: Há muito tempo escrevi alguns artigos em que eu lembrava como a taxa de juros tinha convergido em países com juros altos. Eu citava os casos do México e de Israel, em que os juros tinham convergido em épocas de desaceleração. E o grande ‘pulo do gato’ é que as taxas não voltaram [ao patamar anterior] no momento em que a economia retomava. Creio que isso deve acontecer no Brasil. Isso tem implicações muito relevantes para a nossa economia, para o mercado financeiro. Vamos nos acostumar a viver com um patamar de juros menor para as nossas aplicações e em termos de bancos - como o Credit Suisse vai lidar com os investimentos, com a administração de recursos. Essa é uma mudança muito relevante do nosso ambiente para a economia e para o mercado financeiro.
Valor: Durante muito tempo havia a ideia de que o juro alto atrapalhava tudo. Agora, baixou, mas a economia não cresce. O que aconteceu?
Ilan: Eu me lembro de um artigo que publiquei sobre a mexicanização da economia brasileira. Tinha a ideia de que o México é um país emergente e tinha uma diferença importante em relação ao Brasil, que era juros menores. Mas mesmo assim ele era um país emergente que não crescia muito. O Brasil e o México não crescem muito há décadas. Chamei de mexicanização do Brasil, que é um pouco o que você está narrando aqui. Nós estamos hoje convergindo para um problema que é o da maioria dos emergentes. Como sair da armadilha da renda média. Como voltar a crescer a taxas mais aceleradas? Temos como benefício uma taxa de juros menor. Ou seja, as empresas podem se financiar em um mercado, que é o mercado de capitais crescendo, emitindo ações no mercado interno, viabilizando investimento que não podia viabilizar no passado. Isso ajuda muito. Mas você precisa também de reformas, de ter ganho de produtividade que complemente essa queda.
Valor: Por que as taxas de juros caem, mas os juros de mercado não caem na mesma proporção?
Ilan: Na verdade, quando você olha o mercado de capitais, como as grandes empresas estão se financiando, você vê que elas estão se financiando a taxas muito mais baixas do que no passado. Então a taxa Selic já está se alastrando para uma parcela de quem toma a taxa de juros. Mas você tem que passar isso para o resto da economia. E isso, na minha opinião, vai ocorrer e está ocorrendo. Você vê que as taxas vão caindo. Não caem na mesma proporção porque você tem outros fatores. Tem toda a questão ligada a garantias, informação, risco. Tudo isso está melhorando, mas não é na mesma proporção. Não é só da Selic que a estrutura de juros depende.
Valor: Países emergentes começam a discutir o problema do “zero lower bound”. Esse é um problema que pode afetar o Brasil também?
Ilan: Eu diria que, como o Brasil veio de um patamar de juros mais alto que no resto do mundo - por muito tempo éramos acusados de ser os campeões dos juros -, então a queda tanto local quanto o ambiente global de juros menores, por enquanto, é uma boa notícia para nós. Nós não estamos com o problema do resto do mundo, que é juros negativos, juros zero. Estamos com juros positivos, mas menores. Para nós neste momento ainda é uma notícia positiva. O Brasil é um dos poucos países onde quedas adicionais das taxas de juros, seja a Selic seja a estrutura de juros, é uma notícia positiva. O que é diferente das quedas no Japão, na Europa, em países que estão muito mais próximos do piso.
Valor: Mas esse momento pode se transformar em uma notícia preocupante? Por exemplo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse ao Valor que a taxa neutra de juros despencou. Hoje ela estaria bem abaixo de 2%.
Ilan: Eu diria que o Brasil precisa focar é nas questões reais. Produtividade, infraestrutura, sustentabilidade das contas públicas, reforma tributária. Tem uma quantidade de assuntos que temos que lidar que eu acho que vem antes de nos preocuparmos com a questão da queda dos juros. A queda dos juros, na verdade, contribui para nos ajudar neste momento. Quanto que o juro neutro caiu ou não, você sabe que não é um número que se observa e tem que acompanhar ao longo do tempo. Se você olhar o número que está no mercado financeiro, quando você compra um título longo, uma NTN-B, hoje o juro real mais longo está em torno de 3%. Para prazos mais curtos, está entre 1% e 2%. É isso que hoje o mercado está precificando. Quem diria que o juro real de 3% e o mais curto de 1% a 2% faria parte do nosso habitat!
Valor: Quando, no Plano Real, a inflação despencou muitos bancos que perderam os ganhos inflacionários ficaram em situação difícil. Agora, com juros baixos, isso pode, em alguma medida, se repetir?
Ilan: Acho que a situação do sistema financeiro no Brasil é diferente de outros países porque não estamos enfrentando juros negativos. Juro negativo é um desafio global, onde os bancos estão olhando outros tipos de receitas. Não sei se você olhou os resultados que saíram agora nos Estados Unidos e, de fato, com o pagamento de cartões, intermediação, com os empréstimos, isso gerou uma receita razoável para os bancos internacionais. No Brasil temos ainda juros positivos, temos receitas que vêm de outros componentes. E é claro que estamos, hoje, sob mais concorrência das fintechs, isso gera um ambiente saudável de competição que é bom para o crescimento. Se você olhar o crescimento do crédito livre, ele é absolutamente saudável. Você tem crescimento de dois dígitos. É claro que o direcionado, principalmente o crescimento ligado ao BNDES, é bem menor, foi inclusive negativo por um bom tempo. Mas o livre está crescendo.
Valor: Mas essa desintermediação, essa massa de recursos que está indo para os fundos de investimento. O dinheiro não está queimando na mão de muita gente, não fica difícil dar retorno para o investidor? Essa não é uma zona perigosa?
Ilan: Não vejo assim. Em um país com tanta necessidade de financiar infraestrutura, com tanta necessidade de financiar crescimento, com tanta necessidade de gerar ativos imobiliários, se de um lado está queimando - e eu acho que não está queimando, simplesmente você tem uma normalização dos investimentos no Brasil -, do outro lado você tem uma necessidade enorme de crescimento. Se você conseguir juntar os dois, é só ganho.
Valor: E por que não junta?
Ilan: Acho que está começando. De novo, a estrutura de juros não é a única coisa que vai determinar o crescimento. É preciso olhar para frente e ter a percepção de que as reformas avançaram, de que as contas públicas estão em ordem, que o sistema tributário para se investir é mais simples. Que se tenha a infraestrutura que precisa e que a educação está em ordem. Tudo isso é o que faz as economias no mundo crescerem.
Valor: Como é possível escapar da armadilha da renda média?
Ilan: Não vejo saída senão focar em educação, educação, educação. Investimentos em educação. No curto prazo, realocar mais para o investimento. Uma parte desse investimento o que vai ser? É na privatização, que está vindo. É na infraestrutura.
Valor: Mas a taxa de juros não vai resolver todas essas questões. É isso?
Ilan: Acho que é complementar. Quem tempos atrás falasse que a gente está discutindo aqui a questão do juro real de curto prazo, de 2%, e no longo prazo indo para 3%, ia dizer: olha isso aqui é um grande avanço. Agora, nós precisamos gerar as condições para a volta do crescimento. Não depende só dos juros.
Valor: O dólar que não para de subir não é um sinal de que o juro está muito baixo no Brasil?
Ilan: A nova estrutura de juros no Brasil, que veio para ficar, tem implicações na nossa taxa de câmbio de uma forma estrutural. Antes nós tínhamos uma moeda que tinha o que o mercado financeiro chama de “carry” ou, em português, um juro que atraía recursos de uma forma permanente, mas os recursos eram muitas vezes de portfólio, muitas vezes de empresas que achavam caro se financiar aqui e portanto se financiavam lá fora. Esse é um mundo em que a arbitragem daquele tamanho já não existe mais.
Valor: Esse câmbio mais depreciado também veio para ficar?
Ilan: Quando se olha a média da taxa de câmbio nós provavelmente vamos ver uma taxa mais depreciada nos próximos anos do que nos últimos anos. A taxa de câmbio é o que nos torna, economistas, mais humildes. É sempre algo difícil de se prever. Então qualquer economista com um pouco de cabelo branco ou, como eu, sem cabelo, não se arrisca a fazer apostas para onde o câmbio vai. Mas temos que reconhecer que uma nova estrutura de juros em um novo patamar tem implicações sobre os preços, quando se compara os preços do Brasil com o resto do mundo, que é a taxa de câmbio.
Valor: Como falar em ganhos permanentes se estamos nos passos iniciais do ajuste fiscal?
Ilan: Sem dúvida, acho que a questão fiscal está num processo que precisa ser resolvido. É um desafio sério. A reforma da Previdência foi um passo extremamente relevante. Ela ainda tem que ser aprovada no segundo turno no Senado. E já estamos pensando em outros passos. Fala-se na reforma administrativa. Os gastos obrigatórios ainda são uma questão que se coloca. Nossa dívida é elevada, portanto a privatização também se coloca.
Valor: Não há risco de o BC ter colocado o carro à frente dos bois?
Ilan: Quando você olha a inflação no mundo, a inflação no Brasil, olha as expectativas de inflação, acho que esse é um processo que me parece, pelo menos na percepção que se tem até agora, que a queda nos juros foi uma queda que todo mundo reconhece como sustentável. É claro que temos que continuar trabalhando a questão fiscal, que não está resolvida.
Valor: Qual seria o peso do Estado no baixo crescimento? Na hora que o Estado saiu, tudo parou.
Ilan: Eu tenho a impressão de que o fato de o governo ter parado de crescer as despesas em 6% ao ano, o fato de o estímulo do governo, via fiscal e quase-fiscal, ter caído, isso claro que gerou consequências de curto prazo, mas também está gerando uma expectativa de que, se você conseguir crescer sem a base do consumo do governo, você pode gerar um crescimento muito mais saudável no futuro. É difícil a gente saber em que momento essa mudança de crescimento baseado em despesas do governo ou subsídios do governo leva aquele ‘crowding out’ virar um ‘crowding in’. Ou seja, você gerar um espaço para o crescimento baseado na produtividade do setor privado, é muito difícil saber quando esse timing vai ocorrer.
Valor: Começa a se formar a percepção de que o Estado tem que puxar o investimento para gerar crescimento. Você compartilha dessa visão?
Ilan: Se a gente não tivesse testado essa alternativa nos últimos dez, vinte ou trinta anos, eu até diria que vamos tentar de novo. Mas já tentamos e não deu certo. Chegamos no limite da nossa capacidade de endividamento. Chegamos no limite da nossa carga tributária. E chegamos também no limite da inflação, chegamos a ter hiperinflação no passado. Levamos vários anos para concluir que não dava para subir impostos. E agora estamos chegando à conclusão de que, com esse crescimento da dívida, não conseguiremos. Então essa não é uma solução que vai nos levar para frente. Eu gosto muito da palavra persistência. Eu na verdade gosto tanto que ela fez parte de atas e atas do Copom.
Valor: É essa nossa eterna busca de atalhos...
Ilan: Quando você olha a Argentina, e eu não quero criticar o nosso vizinho, mas acho que o que falta lá muitas vezes é persistência. Se você olhar o que aconteceu com a mudança da meta. Eles ficaram preocupados com o crescimento que estava em 2,5%, em vez de 3%. E aí mudaram a meta de inflação, e a coisa começa a desandar. Hoje em dia tem recessão.
Valor: Quais são os seus planos?
Ilan: Eu estou nessa nova vida, feliz de estar nesse novo desafio. De estar num mercado para poder trabalhar com aquela queda de juros que eu ajudei a baixar.