Envelhecimento rápido impõe novos desafios para o Brasil
Por Leila Souza Lima | De São Paulo
Moradora de São Caetano do Sul, Ruth Gonçalves Xavier, de 98 anos, veio de uma família com dez irmãos, dos quais sete mulheres que se formaram professoras
O longo debate sobre a necessidade de uma reforma básica do sistema de aposentadorias, num ambiente de pressão crescente do envelhecimento populacional, evidencia o atraso do Brasil em políticas públicas para lidar com a nova realidade demográfica. Hoje, 14% da população é composta por idosos, percentual que era de aproximadamente 10% em 2011 e vai a 20% em 12 anos, aponta o especialista em envelhecimento Alexandre Kalache com base em projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Se o aumento da população mais idosa, com uma parcela crescente de nonagenários e centenários, é vista como conquista, é também objeto de preocupação de especialistas, que, ao olharem os indicadores, afirmam categoricamente que o país caminhou na direção oposta à ideal para nações longevas.
Questões que deveriam estar em pauta não têm lugar na agenda econômica, caso das políticas de emprego para pessoas com mais de 50 anos de idade. Outros pontos são as políticas de saúde e ainda de educação financeira, para que cidadãos elevem suas poupanças a fim de viver até os 90 ou cem anos de maneira mais confortável, o que evitaria um colapso no SUS e na assistência social.
"Chefes de Estado que querem fazer reforma devem dar exemplo. Outros políticos também. Não pedem isso dos outros? Claro que a discussão é política, mas essencialmente econômica", diz Kalache.
Enquanto isso, o país debateu por muito tempo como evitar que alguns se aposentem com 55, 50 anos ou até menos, devendo enfim aprovar uma reforma da Previdência. Mas, diante do aumento da sobrevida, provavelmente haverá um número ainda expressivo de brasileiros a receber proventos por tempo maior do que o de contribuições - ou seja, um desequilíbrio crescente.
Para o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social, o Brasil se desenvolveu bem do ponto de vista social, mas sem a responsabilidade econômica de fazer reformas estruturais importantes e atuar sobre a produtividade.
"Em 1980, a expectativa de vida era de 62,5 anos, e, em 2016, passou a 75,8 anos. Ou seja, a cada três anos do calendário, avançou pouco mais de um ano. A fecundidade também caiu de forma contundente. Mas não fizemos a reforma e gastamos 13% do PIB com Previdência", observa Neri.
"O Japão, nação mais longeva do mundo, gasta 10%, embora tenha uma população com mais de 65 anos 350% maior que a nossa. O agravante é que vamos multiplicar por cinco nossa população de idosos nos próximos 50 anos", compara o economista.
Levantamento feito para o Valor pelo setor de Previdência do Ministério da Economia mostra que há atualmente 5.301 beneficiários com mais de cem anos de idade - sendo 1.906 homens, 3.394 mulheres e uma pessoa de sexo não definido. Desse total, 1.237 homens foram aposentados por idade, e 669, por tempo de contribuição. Entre as mulheres, 3.130 passaram para a inatividade por idade, e 264, por tempo de contribuição. Segundo o Anuário Estatístico da Previdência Social, os nonagenários aposentados somavam 424.231 no ano de 2010. Já em 2017 o total de aposentados com mais de 90 anos tinha subido para 632.975.
Economias produtivas têm potencial para gerar riqueza, empregos e renda. Além de reduzir pobreza e desigualdades, é um ambiente mais propício à permanência das pessoas em atividade - e com isso absorver a massa trabalhadora que ganhou qualidade e tempo de vida. Mas nem sempre uma economia não produtiva, como é classificada a brasileira, é atrasada, pondera Neri - o que leva à conclusão de que poderíamos estar em situação bem melhor hoje, se houvesse vontade política.
Doutor em saúde pública pela Universidade de Oxford, presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil e copresidente da Aliança Global de Centros Internacionais de Longevidade (ILC Global Alliance), que reúne 17 países, Kalache alerta que, diferentemente do que ocorreu em outras partes do mundo, os brasileiros não vão demorar muito a sentir os impactos da transformação etária. "Isso ocorrerá em menos de duas décadas."
"Em 1840, 10% dos franceses tinham mais de 60 anos, que só passaram a 20% no fim do século 20, percorridos 145 anos. Vamos dobrar essa proporção em 19 anos, ciclo que se completará em 2030. É uma fração do tempo, apenas uma geração para dar um salto que a França levou seis gerações para concluir", diz ele.
Para Kalache, a aposentadoria dos brasileiros é "precoce" e expressa as desigualdades. "Pelo sistema atual, o brasileiro para de trabalhar, em média, aos 55 anos de idade, com 25 a 30 anos de contribuição, a depender do regime. Isso favorece sobretudo aos que estão no topo da pirâmide socioeconômica."
O sistema foi desenhando durante o governo Getúlio Vargas, quando a expectativa de vida era de 40, 45 anos - hoje é 75,8 anos. "Tornou-se [o modelo] insustentável, pois o déficit da Previdência hoje é imenso [quase R$ 300 bilhões]. Mas veja que o do funcionalismo, incluindo as Forças Armadas, é escandaloso. São esses [funcionários públicos] que se aposentam muito cedo criando distorções absurdas", critica o especialista. Aprovada em duas votações pela Câmara, a reforma da Previdência define idade mínima de 65 anos para homens e 62 para mulheres. Agora a proposta será analisada pelo Senado.
Kalache aponta duas condições para o bom envelhecimento: ter saúde e nível educacional elevado. E, em alguns casos, a família em que uma pessoa nasce consegue afastar um futuro adverso ao apostar na educação.
Ruth Gonçalves Xavier, 98 anos, combina essa condição com os ganhos sociais de cidadania que, como ressalta Marcelo Neri, o país experimentou nos últimos anos. Foi esse salto de qualidade que trouxe à professora aposentada maior consciência sobre bem-estar e saúde.
Em 2017, o número de aposentados com mais de 90 anos tinha atingido um total de 632.975
Frequente às aulas de ginástica que o centro comunitário de São Caetano do Sul oferece, ela conta que se aposentou com 30 anos de magistério, que vive bem e a única escolha que repensaria é ter parado de trabalhar no tempo regulamentar, em 1976. "Achei que era suficiente, fui cuidar da casa. Mas isso mexeu comigo, tanto que tive problemas de saúde. Na escola, a gente esquece os problemas. Se fosse hoje, teria estendido", conta Ruth, viúva e com dois filhos.
Membro de uma família com dez irmãos, dos quais sete mulheres que se formaram professoras, Ruth é grata ao pai "que queria um futuro melhor para as filhas". "Uma das minhas irmãs queria ser costureira, mas ele disse que só seria decidido depois que ela fizesse os exames. Tornou-se mesmo professora", recorda-se ela.
Nem todos, porém, têm ou terão as condições familiares de Ruth, que, segundo a análise de Alexandre Kalache, está entre os que tiveram acesso a uma educação básica de qualidade - aquela que pode influenciar destinos. "Estamos andando para trás. Em educação, cortamos 55,7% do orçamento de 2014 a 2017; em saúde, 20,3%. São reduções substanciais, e estou olhando para números do governo federal, não de ONGs ou pesquisas acadêmicas", pontua.
"O sistema de saúde público brasileiro foi desenhado com base no da Inglaterra e, em vez de ser aprimorado, está andando para trás", acrescenta. Ao suprimir esses investimentos, ressalta, o governo fragiliza gerações futuras e as chances de enfrentar outro desafio: oferecer meios para que os novos brasileiros sejam autossuficientes e produtivos.
Kalache faz observação sobre outra situação que classifica como crítica. "A natalidade está em queda desde o fim do último século. A taxa de reposição hoje é de 1,6 filho por mulher. Não é um repique, uma tendência que veio para ficar", afirma o especialista. "Só que as mulheres com mais de oito anos de educação geram um filho na média ou nenhum. Já entre as que têm menos de oito anos de formação, um indicador social muito potente, a média de reposição é de 3,4. Então observe que estão tendo filhos mulheres pobres, com nível educacional baixo."
Essas crianças e os futuros jovens, ressalta, dependerão de forte investimento estatal em educação pública para que sejam produtivos e sustentem um país que envelhece rapidamente. "Cinquenta e cinco por cento das crianças de oito a nove anos não estão alfabetizadas, uma desvantagem do Brasil em relação a outros países."
Muitos desses países, no entanto, primeiramente enriqueceram para depois envelhecer. Por isso, na avaliação do especialista, é de pouca utilidade olhar o que nações como Dinamarca, Canadá ou Japão fizeram, já que o Brasil não tem o tempo nem o dinheiro que tiveram para responder ao envelhecimento que, lá, ocorreu de forma gradual.
Para Kalache, a resposta mais eficiente a esse desafio - o rápido envelhecimento da população - é colocar o quanto antes em prática mudanças que viabilizem os sistemas previdenciário e assistencial, e principalmente priorizar o investimento na educação. "Não podemos encarar apenas o que acontece hoje. Temos que pensar em termos de perspectivas de curso de vida. Nos que envelheceram e estão nesse processo".
Mas, para o especialista, o brasileiro não tem essa percepção. "Estamos num das piores posições no ranking de produtividade e competitividade do mundo, o que é ruim tanto para quem está embaixo quanto no alto, que poderia desfrutar de um dos países mais produtivos do mundo e, dessa forma, obter mais lucro e serviços de qualidade. Um lugar onde todo mundo estivesse mais feliz e sem violência."